ESPECIAL-Facções brasileiras tornam-se grandes exportadoras de cocaína e inundam Europa com pó branco
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Por Gabriel Stargardter
SANTOS (Reuters) - Anos de rastreamento de drogas no Porto de Santos deram ao inspetor de alf?ndega Oswaldo Dias um bom faro para cargas suspeitas. Um carregamento de retroescavadeiras de segunda m?o com destino ? Europa, no final do ano passado, parecia suspeito.
Ent?o, na manh? de 18 de novembro, Dias enviou as m?quinas para um scanner, que revelou uma massa estranha alojada dentro de um dos bra?os amarelos da escavadeira. Ele pulou para dar uma olhada e descobriu rachaduras no metal e uma pintura duvidosa. Dias pediu um ma?arico.
L? dentro, ele encontrou 158 quilos de coca?na destinados ao porto belga da Antu?rpia.
Segundo Dias, o uso de equipamentos de constru??o era apenas o mais recente artif?cio empregado por traficantes brasileiros. Em menos de uma d?cada, ele os viu passar de vendedores nas ruas do pa?s a grandes players internacionais, usando Santos e outros portos para transportar narc?ticos para o exterior.
'A Europa ? o destino por excel?ncia', afirmou Dias, que se aposentou no final do ano passado da Receita Federal.
O Brasil se tornou um dos principais fornecedores de coca?na para a Europa, transformando a participa??o do pa?s no com?rcio transatl?ntico de drogas em uma velocidade que chocou as autoridades antidrogas.
H? muito considerado um pa?s consumidor de coca?na, um mercado para a droga produzida na Col?mbia, Peru e Bol?via, o Brasil se transformou em uma plataforma de lan?amento para levar a coca ao oceano. De acordo com autoridades, fac??es locais se infiltraram nos portos brasileiros, enviando quantidades recordes de coca em navios de cont?ineres com destino ? Europa, onde obt?m pre?os mais altos.
As fac??es brasileiras s?o agora participantes essenciais no mercado europeu de coca?na, avaliado em mais de 9 bilh?es de euros, segundo an?lise feita pela Reuters de dados alfandeg?rios sobre apreens?es de coca?na, relat?rios confidenciais de intelig?ncia e pesquisas sobre drogas ilegais; e entrevistas com mais de duas dezenas de pessoas, incluindo agentes de seguran?a, funcion?rios p?blicos, diplomatas, especialistas antidrogas e pessoas envolvidas no com?rcio il?cito.
'Para coca?na, o Brasil emergiu como um grande pa?s exportador', disse Laurent Laniel, analista s?nior do Observat?rio Europeu da Droga e da Toxicodepend?ncia (OEDT), a ag?ncia de drogas da Uni?o Europeia, com sede em Lisboa. 'Isso ? definitivamente algo novo.'
O com?rcio brasileiro de coca?na abrange grandes dist?ncias na maior na??o da Am?rica do Sul. A Reuters acompanhou as pol?cias brasileira e peruana em a??es contra criminosos perto da fronteira compartilhada dos pa?ses na Amaz?nia, onde houve uma explos?o de cultivo e processamento de coca, planta usada para produzir coca?na.
'Est? fora de controle', disse o policial federal brasileiro Ant?nio Salgado, depois de se juntar aos colegas peruanos para destruir laborat?rios de processamento de coca. 'Voc? sobe no helic?ptero e em dois minutos come?a a ver planta??es aqui, ali, em toda parte.'
A Reuters tamb?m esteve no Paraguai, cuja pol?cia provou n?o ser capaz de enfrentar as fac??es brasileiras que usam o pa?s como caminho de produtos andinos para o Brasil; e em Santos, o maior porto da Am?rica Latina, onde as apreens?es de drogas continuam quebrando recordes.
Todos os elos dessa vasta cadeia de suprimentos destacaram o novo status do Brasil como um dos principais centros de transbordo de coca para a Europa.
A mudan?a pode ser vista na B?lgica, a principal porta de entrada para a coca?na sul-americana na Europa, quase inteiramente atrav?s do porto de Antu?rpia, de acordo com o OEDT.
Em 2019, as autoridades apreenderam um recorde de quase 62 toneladas de coca?na na Antu?rpia, o segundo maior porto da Europa. Grande parte disso --15,9 toneladas, cerca de um quarto do total-- veio de navios procedentes do Brasil, mostram dados alfandeg?rios belgas. Em 2015, as alf?ndegas belgas apreenderam apenas 293 kg vindos do Brasil, menos de 2% do transporte daquele ano.
Uma hist?ria semelhante ocorre na Espanha, o segundo portal mais importante da Europa. H? cinco anos, o Brasil n?o se classificava entre os principais pontos de embarque de navios de carga apanhados levando coca?na para a Espanha. Os cinco principais pontos eram Col?mbia, Venezuela, Portugal, Equador e Chile, segundo dados fornecidos ? Reuters no ano passado pela alf?ndega espanhola. O Brasil saltou para o primeiro lugar em 2016 e novamente em 2018, quando a pol?cia apreendeu um recorde de 4,3 toneladas de navios vindos de portos brasileiros, mostram os n?meros.
O Brasil tamb?m foi o principal ponto de origem da coca?na apreendida na Alemanha em 2018, com uma apreens?o hist?rica de quase 2,1 toneladas, de acordo com os dados aduaneiros alem?es mais recentes.
Especialistas alertaram que os n?meros de confisco n?o contam a hist?ria toda; apreens?es maiores podem refletir melhor policiamento, em vez do aumento nos fluxos.
Mas duas coisas s?o certas: a Europa est? 'nadando em drogas' e o Brasil desempenha um papel cada vez mais crucial para lev?-las at? l?, disse Andrew Cunningham, outro especialista do OEDT, a ag?ncia de drogas da UE. 'N?o h? absolutamente nenhuma d?vida sobre isso', afirmou.
BRASIL DECOLA
O Brasil sempre teve o potencial de se tornar um grande exportador de coca?na, de acordo com Elvis Secco, que lidera uma unidade antidrogas da Pol?cia Federal.
As tr?s fac??es mais importantes do Brasil --Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho e Fam?lia do Norte-- movimentam as drogas por enormes dist?ncias para abastecer os consumidores brasileiros. Com milhares de navios de carga saindo do Brasil anualmente para Europa, ?frica e outros destinos, n?o havia raz?o para n?o ganhar o oceano, disse Secco ? Reuters.
Mas outras tend?ncias recentes ajudaram os traficantes brasileiros a se expandir. A produ??o global de coca?na --quase exclusivamente de Col?mbia, Peru e Bol?via-- mais do que duplicou entre 2013 e 2017, atingindo 1.976 toneladas, segundo o Escrit?rio das Na??es Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). A Am?rica do Sul foi inundada com p? de alta pureza.
Os crescentes suprimentos resultaram na queda dos pre?os, atraindo novos usu?rios em todo o mundo, de acordo com o World Drug Report 2019, do UNODC.
Com a distribui??o no lucrativo mercado dos Estados Unidos encurralada por cart?is mexicanos, as organiza??es criminosas do Brasil miraram a Europa. Os pre?os s?o mais altos do que nos EUA, devido ?s dist?ncias mais longas que precisam percorrer, disseram autoridades. A Europa tamb?m ? um ponto de parada conveniente para coca?na destinada a mercados em crescimento no Oriente M?dio e na ?sia, acrescentaram.
Como a Europa, o Brasil tamb?m ? inundado de coca?na. Em 2019, a Pol?cia Federal registrou um recorde de 105 toneladas, aumento de 32% em rela??o a 2018. O presidente Jair Bolsonaro diz que ? a prova de que o pa?s est? vencendo a guerra contra as drogas. 'Estamos sufocando o crime organizado', afirmou ele no Twitter em outubro.
Secco, o chefe do combate ?s drogas da PF, ? mais cauteloso. Ele disse que as apreens?es aumentaram porque a produ??o andina aumentou muito e mais coca?na est? entrando no Brasil, 'n?o por causa de novos investimentos' na seguran?a.
DROGAS NOS PORTOS
Grande parte da coca?na que flui do Brasil para a Europa ? traficada pela maior e mais poderosa organiza??o criminosa do Brasil, o PCC, segundo as autoridades.
A fac??o, segundo as autoridades, domina uma rota privilegiada de contrabando que come?a na Bol?via e depois segue ao Brasil via Paraguai, onde o crime organizado est? sobrecarregando as institui??es fracas do pa?s. Em janeiro, 75 membros do PCC escaparam de uma pris?o paraguaia em uma fuga que as principais autoridades de seguran?a sabiam dos planos, mas n?o tinham poder para impedir, pois o grupo tinha diversos guardas sob sua influ?ncia.
Sediado em S?o Paulo, o PCC domina o tr?fico no Porto de Santos, que movimenta cerca de 7.000 cont?ineres por dia. A pol?cia diz que a fac??o suborna ou amea?a os trabalhadores portu?rios a colocar coca?na em cont?ineres. Algumas drogas chegam a bordo de navios de carga no mar, disse Cunningham, da ag?ncia de drogas da UE.
Depois de chegar ? Europa, a mercadoria ? distribu?da em todo o continente por criminosos marroquinos, italianos e do leste europeu em parceria com o PCC, afirmaram autoridades.
Em julho de 2019, a pol?cia brasileira prendeu Nicola Assisi, considerado uma figura importante da m?fia italiana ?Ndrangheta, junto com seu filho Patrick, perto de Santos. Eles s?o 'acusados ??de serem alguns dos maiores fornecedores de coca?na da Europa', de acordo com um documento judicial do Brasil. Atualmente presos em Bras?lia, eles aguardam extradi??o para a It?lia. O advogado deles, Eug?nio Malavasi, se recusou a comentar o caso.
Com o Porto de Santos inundado de coca?na, as autoridades portu?rias refor?aram a seguran?a. Desde 2016, todos os cont?ineres com destino ? Europa s?o escaneados por raio X, segundo Dias, o inspetor de alf?ndega aposentado. Em 2019, os agentes aduaneiros capturaram um recorde de 27 toneladas de coca?na em Santos, aumento de 154% em compara??o ao n?mero de tr?s anos atr?s.
Ciro Moraes, comandante da PF em Santos, considera que as autoridades captam apenas uma fra??o. A ?nica boa not?cia, disse ele, ? que o roubo de carga no porto caiu vertiginosamente. 'Os caras que roubavam carga agora est?o na log?stica de drogas', afirmou.
COCA?NA NA AMAZ?NIA
As organiza??es criminosas do Brasil tamb?m importam coca?na para a regi?o amaz?nica ao longo da chamada fronteira tripla com Col?mbia e Peru, segundo a Pol?cia Federal.
Os policiais dizem que grande parte do produto entra no Brasil de barco ao longo do rio Amazonas, com destino a Manaus, cidade de aproximadamente 2 milh?es de habitantes. De l?, desce o rio at? chegar aos portos do Nordeste, como Suape e Natal, em prepara??o para a travessia do Atl?ntico.
A Fam?lia do Norte, conhecida como FDN, tem a maior influ?ncia na Amaz?nia, disseram autoridades. Mas as crescentes exporta??es europeias atra?ram concorrentes -- o PCC, o Comando Vermelho e outros grupos tentam adquirir o controle.
Por causa desta disputa, houve grande viol?ncia nas pris?es da regi?o, onde as fac??es recrutam prisioneiros n?o afiliados para suas equipes. As autoridades brasileiras culparam as fac??es em guerra por dois dist?rbios prisionais que deixaram mais de 100 mortos no ano passado. Tiroteios s?o comuns em Manaus e ao longo do rio Amazonas.
As fac??es est?o 'menos assustadas e mais poderosas' do que costumavam ser, disse o oficial da PF Charles Nascimento, um veterano contra o tr?fico de drogas na Amaz?nia.
O governo de Bolsonaro mirou as organiza??es criminosas ao atingir suas finan?as e levar os l?deres presos a pris?es federais de seguran?a m?xima.
O Brasil tamb?m est? cooperando com outros pa?ses afetados. Autoridades belgas e brasileiras prometeram em 2019 aprofundar o compartilhamento de informa??es, refor?ar a seguran?a portu?ria e combater a lavagem de dinheiro. E o governo Bolsonaro est? intensificando os esfor?os antinarc?ticos com seus vizinhos andinos.
PACTO DE FAC??ES
No final do ano passado, a Reuters se uniu a uma miss?o conjunta de Brasil e Peru, passando uma semana com quatro policiais federais brasileiros e algumas dezenas de policiais antidrogas peruanos em Caballococha, uma cidade peruana com cerca de 24.000 pessoas. Acess?vel apenas por via a?rea ou de barco, Caballococha fica ?s margens do rio Amazonas, ao sul da Col?mbia e a cerca de 100 quil?metros rio acima da fronteira brasileira.
Essa regi?o do Peru, chamada de Bajo Amazonas, responde por apenas 4% da colheita de coca de 50.000 hectares do pa?s, de acordo com o UNODC. Mas o cultivo est? crescendo, com aumento de 41% em 2017 em rela??o ao ano anterior, de acordo com os dados mais recentes.
O coronel Miguel ?ngel Peric, chefe local da pol?cia antidrogas do Peru, afirmou que esses n?meros n?o captam a escala do problema. Ele estimou que quase todos os moradores de Caballococha possuem algum v?nculo direto ou indireto com o com?rcio de coca?na. Policiais peruanos disseram ? Reuters suspeitar que alguns colegas est?o ligados a traficantes, embora n?o tenham apresentado evid?ncias.
A mudan?a de alian?as entre gangues aumentou a complexidade. Surgiu uma parceria entre a FDN e o Los Caquete?os, um grupo colombiano que fornece coca?na produzida na Col?mbia e no Peru, segundo dois relat?rios de intelig?ncia confidenciais vistos pela Reuters, um da pol?cia brasileira e outro de policiais colombianos.
Los Caquete?os foi fundado em 2010 por ex-membros de uma for?a paramilitar local e est? sediado na cidade fronteiri?a colombiana de Leticia. ? 'a organiza??o mais hostil na regi?o da tr?plice fronteira', segundo o relat?rio colombiano.
A for?a antinarc?ticos bilateral buscava interromper algumas das opera??es do Los Caquete?os em torno de Caballococha. Mas na selva, a pol?cia sempre parecia estar um passo atr?s dos traficantes.
SEM VEST?GIOS
A miss?o contou com dois helic?pteros MI-17 russos, fornecidos pelos peruanos. Um quebrou imediatamente, causando um atraso de alguns dias enquanto uma nova pe?a era transportada.
Uma vez consertado o helic?ptero, a miss?o realizou apenas tr?s pris?es. Os suspeitos desapareceram na selva ao som da aeronave se aproximando.
A equipe tamb?m incendiou cinco laborat?rios de pasta de coca, que executam a primeira etapa do processamento nas planta??es de coca. Essas instala??es s?o tipicamente barracos, onde os trabalhadores enchem barris de pl?stico com folhas de coca, gasolina e outros produtos qu?micos para formar pasta de coca. Esse lodo de cor verde ? ent?o transportado para laborat?rios mais sofisticados para ser transformado em coca?na branca em p?.
Mas com o passar dos dias, as apreens?es de pasta de coca n?o chegaram a muito. Ent?o veio uma novidade. Um informante disse que um pequeno avi?o com 300 kg de pasta de coca havia ca?do durante a decolagem em uma pista de pouso clandestina. Havia outros 700 kg ao lado da pista, guardados por at? 10 homens fortemente armados, segundo o informante.
Por volta do meio-dia do dia seguinte, algumas dezenas de policiais peruanos partiram em helic?pteros.?Quando a pista foi vista, foram disparados tiros de metralhadora. Mas, ao pousar, n?o encontraram homens armados, drogas ou avi?o. Eles localizaram os destro?os carbonizados de um Beechcraft Baron 58, uma aeronave de propriedade brasileira, deixada no rio. Tamb?m n?o havia nada.
(Reportagem adicional de Catarina Demony, em Lisboa, e Angelo Amante, em Roma)
Escrito por Reuters
SALA DE BATE PAPO