ESPECIAL-Indígenas lutam há décadas para recuperar terras vendidas para fazendeiros no MS
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Por Karla Mendes
CAARAP?, Mato Grosso do Sul (Thomson Reuters Foundation) - Tr?s anos depois de ser baleado, o cacique Elp?dio Pires ainda sente o cheiro de p?lvora.
'Vieram para me matar', disse o ind?gena Guarani-?andeva, de 50 anos, mostrando uma cicatriz nas costas. 'Perdi muito sangue. N?o consigo ficar muitas horas em p? mais.'
O atentado, que ocorreu perto da fronteira com o Paraguai, foi cometido por um pistoleiro a mando de um fazendeiro, segundo Pires.
O conflito foi provocado por terras situadas na cidade de Paranhos, no Mato Grosso do Sul.
'Atingiram meu cunhado no bra?o, estupraram uma mulher e cortaram todo o cabelo dela', disse ele ? Thomson Reuters Foundation a respeito do ataque.
'Sofremos (ataques) assim todo dia', disse Pires nos bastidores de um encontro de l?deres ind?genas em agosto em Caarap?, no Mato Grosso do Sul.
A reuni?o foi realizada numa ?rea conhecida como terra ind?gena Guyrarok?, que?tamb?m ? alvo de disputa entre ind?genas Kaiow? e fazendeiros e se tornou s?mbolo da luta pela demarca??o de terras.
Em 2000, o Minist?rio da Justi?a reconheceu a ?rea que Pires e o povo Guarani-?andeva reivindicam como terra ind?gena Potrero Gua?u, depois que laudos antropol?gicos comprovaram os la?os ancestrais da tribo.
Mas o processo de demarca??o foi interrompido depois que fazendeiros entraram com a??es judiciais por se recusarem a deixar a terra sem indeniza??o, paralisando o processo.
O atentado contra Pires ? parte de uma longa s?rie de epis?dios de viol?ncia ligados a disputas de terra entre ind?genas e fazendeiros no Mato Grosso do Sul.
Com 17 assassinatos, Mato Grosso do Sul foi o terceiro Estado mais letal do pa?s no ano passado para povos ind?genas, conforme relat?rio divulgado em setembro pelo Conselho Indigenista Mission?rio (Cimi). Em 2016, Mato Grosso do Sul registrou 18 assassinatos.
O Cimi informou que muitas mortes est?o ligados a conflitos territoriais, j? que a aus?ncia de t?tulos de terras est? por tr?s da maioria dos problemas que afligem a popula??o ind?gena brasileira.
As autoridades dizem que os n?meros reais de assassinatos s?o bem maiores.
'Sem d?vida, a viol?ncia tem aumentado', disse o procurador federal Marco Antonio Delfino de Almeida, do banco do passageiro de uma caminhonete ao percorrer planta??es de soja e cana-de-a??car a caminho do encontro dos l?deres ind?genas para ouvir suas reivindica??es.
Almeida disse que a falta de t?tulos de terras ? uma quest?o chave: o censo de 2010 mostrou que o Mato Grosso do Sul tem cerca de 73 mil habitantes que se autodeclaram ind?genas, a segunda taxa mais alta do pa?s, perdendo apenas para o Amazonas, com cerca de 169 mil.
Apesar disso, os ind?genas de Mato Grosso do Sul det?m menos de um por cento dos t?tulos de terras no estado, afirmou Almeida. No Amazonas esse n?mero chega a quase 30 por cento, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA).
'? um n?mero desproporcional', disse.
IMPASSE
A batalha judicial de v?rias d?cadas contra os agricultores por causa de terras ancestrais, disse Almeida, obrigou os ind?genas a ocupar outras ?reas para sobreviverem.
A pecu?ria foi um dos principais fatores da expropria??o de terras ind?genas, disse, uma vez que o Mato Grosso do Sul tem cerca de cerca de 2,7 milh?es de habitantes, conforme estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat?stica (IBGE) neste ano, e 22 milh?es de cabe?as de gado, de acordo com a Federa??o da Agricultura e Pecu?ria de Mato Grosso do Sul (Famasul).
Ao contr?rio de ind?genas de outras partes do pa?s, sobretudo na Amaz?nia, que batalham pelo direito de propriedade de terras p?blicas e devolutas, disse Almeida, no Mato Grosso do Sul os ind?genas requerem a propriedade de terras ancestrais que foram vendidas --e transferidas oficialmente-- a fazendeiros ao longo do ?ltimo s?culo.
O resultado, afirmou, ? um impasse entre ind?genas e fazendeiros, que se recusam a abrir m?o dos t?tulos sem indeniza??es.
A Famasul disse por email que, embora seus membros tenham adquirido suas terras legalmente h? mais de 50 anos, 'um n?mero expressivo' de agricultores teve seus t?tulos questionados, e 143 propriedades foram invadidas.
'S?o ocorr?ncias que evidenciam a inseguran?a jur?dica vivenciada h? d?cadas em nosso estado, resultante da falta de uma resposta definitiva, por parte do poder p?blico, que garanta a pacifica??o no campo', disse a Famasul.
O relat?rio do Cimi mostra que h? 102 reivindica??es de terra feitas por povos ind?genas nas ?ltimas duas d?cadas no Mato Grosso do Sul com alguma pend?ncia administrativa. Muitas, informou, est?o travadas nos tribunais, j? que os agricultores judicializaram os processos de demarca??o.
Apesar de a Constitui??o Federal vedar a indeniza??o de terras ind?genas, o Minist?rio P?blico Federal defende o pagamento de indeniza??o aos ocupantes de terras ind?genas que possuem t?tulos adquiridos de boa f?. Essa posi??o tamb?m recebeu favor?vel da Advocacia-Geral da Uni?o (AGU).
A decis?o, disse Almeida, est? nas m?os do Minist?rio da Justi?a, mas a falta de vontade pol?tica emperrou o processo.
O Minist?rio da Justi?a n?o respondeu a pedidos de resposta para a quest?o.
RESERVA SUPERLOTADA
Muitos dos ind?genas do Mato Grosso do Sul foram expulsos de suas terras durante o processo de coloniza??o e posterior venda das terras para fazendeiros nos ?ltimos 150 anos, disse Crizantho Alves Fialho Neto, indigenista especializado em quest?es fundi?rias da Funda??o Nacional do ?ndio (Funai) em Dourados.
Durante esse per?odo, disse ele, muitos foram assentados ? for?a pelo governo em reservas ind?genas depois de terem sido expulsos de suas terras ancestrais.
No in?cio do s?culo 20 foram criadas oito reservas ind?genas, disse ele, e uma --a de Dourados-- hoje ? a aldeia ind?gena mais populosa do pa?s, com cerca de 16 mil habitantes.
'Mato Grosso ? um dos casos mais dr?sticos de expropria??o ind?gena do pa?s', disse Fialho Neto.
Sem la?os ancestrais com as reservas e sem terra suficiente para subsist?ncia, muitos ind?genas n?o conseguiram se adaptar ? vida nas reservas e est?o tentando retomar suas terras ancestrais, disse o antrop?logo Levi Marques Pereira.
'Na pr?tica, essas reservas tornam o modo de vida ind?gena invi?vel... Como o processo de demarca??o de terras ind?genas est? paralisado, a viol?ncia aumenta nas ?reas de retomada', explicou Pereira.
Priscila Maciel Duarte Lopes ? uma das que --depois de passar a vida na reserva de Dourados-- recentemente se mudou para um acampamento nos arredores da reserva, onde um grupo de ind?genas tenta retomar suas terras dos fazendeiros.
'N?o tem espa?o na reserva para plantar para sobreviv?ncia', disse a ind?gena Kaiow?, de 56 anos, acrescentando que seus ancestrais est?o sepultados na ?rea.
'Essa terra ? nossa? Nosso cemit?rio est? l?? O rio que passa l? ? nosso.'
Mas, relatou Priscila, ela e outros ind?genas do acampamento est?o enfrentando ataques cada vez frequentes por parte dos fazendeiros.
'Eles vivem atirando na gente. O pistoleiro n?o deixa a gente mais descansar', disse ela, mostrando seis balas que recolheu depois de um ataque ao acampamento realizado dois meses atr?s, deixando v?rias pessoas feridas.
Priscila admitiu estar com medo, mas disse que n?o desistir? do seu Tekoha -- palavra da l?ngua guarani para 'terra ancestral' que significa o lugar f?sico 'onde se realiza o modo de ser'.
Pires, o cacique, tamb?m sonha com o dia em que sua comunidade ter? o direito de propriedade pleno de seu Tekoha.
Em 2015 ele e cerca de 160 fam?lias se mudaram para uma ?rea de cerca de mil hectares, ou um quarto da ?rea que foi reconhecida pelo governo como terra ind?gena Potrero-Gua?u e pertencente aos Guarani-?andeva.
'N?s temos direito ? nossa terra. Nossa terra foi reconhecida pelo governo. N?o queremos mais ter conflitos', disse.
Escrito por Redação
SALA DE BATE PAPO